Discussão
Da liberdade religiosa ao escândalo da pedofilia
O escândalo da pedofilia tem levado, como é natural, as pessoas a indagar pela causa do problema. A ignorância ou a má fé leva muitos a atribuir semelhante perversão ao celibato eclesiástico. Basta recordar que tal crime ocorre em todos os setores da sociedade e com maior frequência no próprio âmbito doméstico para repelir como absolutamente falsa tal explicação do problema.
Estou persuadido de que se podem apontar duas causas ou ao menos duas condições favoráveis à propagação do vício da pedofilia na sociedade moderna. A primeira é a chamada cultura da liberdade. A liberdade, hoje, é idolatrada, é o bem maior, não se subordina a nenhum fim. Em tal cultura da liberdade o direito é considerado apenas como a técnica de conciliar os arbítrios dos “cidadãos livres”. O direito não tem nada que ver com a moral. É apenas um instrumento para garantir a liberdade individual. A moral é só uma questão de cultura. E a ordem pública, assegurada pela lei positiva, consiste apenas na harmonia das relações sociais, sem um fundamento na lei natural.
Ora, essa idolatria da liberdade, que deita raízes no livre exame do protestantismo e se consolidou através do iluminismo e da Revolução Francesa, seduziu muitos espíritos católicos. São os católicos liberais condenados por Gregório XVI e Pio IX. O próprio Vaticano II não ficou imune a tal mentalidade. Queimou incenso à deusa da liberdade na declaração Dignitatis Humanae, dizendo que ninguém pode ser impedido de professar sua religião em privado ou em público, contanto que não seja perturbada a ordem pública. E tal direito à liberdade religiosa assiste igualmente aos ateus em sua profissão pública do ateísmo. E não bastasse isto, houve diversas declarações solenes de altas autoridades eclesiásticas dizendo que o VII teve por fim adaptar a Igreja aos valores do iluminismo e ao mundo nascido da Revolução Francesa.
Tudo isto é um delírio, dizia Gregório XVI. Para entender o problema da liberdade, os tratadistas católicos distinguiam (ao menos, antes do VII) entre liberdade psicológica (livre arbítrio), liberdade física (ausência de coerção) e liberdade moral. Por exemplo, fulano não quer trabalhar. Tem para tanto liberdade psicológica, nada o coage, mas não se pode dizer que tenha o direito de não trabalhar, porque a lei moral o obriga a ganhar o seu próprio sustento.
Pois bem, aplicados esses conceitos ao problema da liberdade de cultos, vê-se com clareza meridiana como é falso o princípio moderno da liberdade religiosa, consagrado pelo direito constitucional moderno e inacreditavelmente canonizado pelo Vaticano II.
No século XIX dois grandes católicos brasileiros tiveram o mérito de tratar da questão com maestria. São eles o bispo do Pará D. Macedo Costa e o filósofo José Soriano de Sousa. Combateram a separação entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos cultos, explanando os princípios perenes em que se fundamenta o direito público da Igreja como decorrentes da reta razão que não aceita pôr em pé de igualdade a verdade e o erro. Diz D. Macedo Costa: “Ora, tal é o catolicismo: religião divina, a única que se demonstra, religião perfeitamente lógica, coerente, harmônica, sujeitando nosso espírito á fé, mas à fé razoável. Logo, a religião católica deve excluir e condenar toas as outras. Logo, o católico não pode admitir a liberdade dos cultos.[1]”
Admiráveis palavras de um bispo realmente católico. Coisa raríssima em nossos dias. No entanto, o mais importante é que D. Macedo Costa explica que o respeito às convicções alheias implica a sua veracidade, não basta a sinceridade.[2]
De maneira que, quando se diz, por exemplo, que a Igreja Católica respeita as religiões da humanidade como respostas, ainda que em graus diversos, ao Deus que quer a salvação de todos os homens, há o grave risco de ter por mais ou menos verdadeiras e boas todas as religiões. O certo, o tradicional, aquilo que a Igreja sempre ensinou, é que, em princípio, o culto público das religiões falsas deve ser reprimido. Por uma questão de prudência, podem-se tolerar os cultos falsos para evitar um mal maior à sociedade, ou por caridade, em deferência à sinceridade das convicções mais íntimas dos seus adeptos, tolerar-lhes o culto privado. Mesmo porque o ato de fé é livre e não se pode forçar ninguém a crer. Mas jamais se pode formular um juízo positivo, “otimista”, sobre as religiões falsas e querer estabelecer com elas uma confraternização para o bem da humanidade. Isto não é católico, é ideal maçônico propagado pela ONU em sua declaração dos direitos humanos e infelizmente presente na Igreja pós-conciliar.
Por sua vez, Soriano de Sousa em seu opúsculo A religião do Estado e a liberdade dos cultos faz ver que a possibilidade de aderir a uma religião falsa não é da essência da liberdade mas defeito. Deus e os anjos são livres e impecáveis.[3] Deve-se distinguir, portanto, a liberdade psicológica de aderir a um culto falso, como consequência da imperfeição do livre arbítrio debilitado pelo pecado original, e o direito, como aquilo que é justo e correspondente à verdade e ao bem.[4]
Que tem que ver que ver tudo isso com o escândalo da pedofilia? Tem muito. Por nauseabundo que seja, muito pedófilos reivindicam hoje o seu “direito” dizendo que não perturbam ninguém, que não forçam ninguém, que tudo é uma questão de “cultura”, que um adolescente pode sentir prazer com um adulto. Dizem que muitas vezes são vítimas da extorsão de moleques. Dizem também que, assim como a psiquiatria deixou de considerar a homossexualidade uma patologia, assim no futuro há de considerar a pedofilia como uma opção normal, visto que um adolescente pode sentir tal atração. Quem poderá impedi-los se não perturbam a ordem pública? Sobretudo, se inventarem (ou ressuscitarem) uma religião que os envolva em uma mística orgiástica!
Realmente, do jeito que as coisas caminham, parece que não estamos longe disso. Haverá até psicotrópico para tratar os “intolerantes” que tenham dificuldade de adaptação à cultura da liberdade.
Some-se a tais erros doutrinários de uma falsa noção de direito e liberdade a lama da pornografia e do erotismo invadindo quase todos os ambientes; some-se o elogio da psicanálise nas universidades católicas; acrescente-se ainda a vulgaridade dos costumes, a familiaridade inconveniente nas relações humanas; some-se a omissão dos pais na educação dos seus filhos; mencione-se ainda a indecência dos trajes; recorde-se a nova moral conjugal que nega a hierarquia de fins do matrimônio e ver-se-á então que não poderia haver caldo de cultura melhor para a grassar o vicio até nos recintos mais sagrados. Toda a sociedade está vulnerável, depois de abatidas as muralhas das instituições tradicionais. Em muitas paróquias hoje não há diferença de clima entre Copacabana e as “celebrações”. Careta e hipócrita é quem reclama.
Como se vê, o mundo é perverso e hipócrita atribuindo à Igreja um vício que no fundo ele fomenta e aplaude. Mas para que a Igreja se veja livre dessa nódoa vergonhosa é preciso reconstruir as muralhas da cidade católica, fundada na doutrina do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Anápolis, 6 de abril de 2010 –
Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa