Entre críticas e apoio, a encíclica “Laudato Si” recebeu grande destaque na mídia anglo-saxônica
A nova encíclica do papa Francisco tem despertado grande interesse em todo o mundo e o seu impacto não é ignorado pela grande mídia anglo-saxônica, que discutiu amplamente as palavras do papa. Além dos muitos elogios à encíclica, houve comentários polêmicos, mas, indo-se além do consenso, é notável que a Santa Sé tenha sido capaz de se manter ao passo dos tempos e de transmitir influência positiva em uma questão de grande relevância e atualidade.
Há duas linhas principais na reação da mídia anglo-saxônica: uma é de grande fascínio pela exposição refinada e até poética do papa; a outra é a impressão de que o papa encarou o desafio ecológico com sensibilidade, entrando habilmente em âmbitos não só teológicos, mas também econômicos, científicos e sociológicos.
The Economist, em editorial de 16 de junho, tenta explicar a surpreendente atenção despertada pela encíclica. O colunista diz que a chave para o seu sucesso é o tom "universal do papa", que permite à Santa Sé espalhar a sua mensagem para um público mais amplo que o do mundo católico. Além disso, o documento do papa é tão universal que poderia ser confundido com um documento das maiores organizações ambientalistas, como o Greenpeace ou o WWF, opina a revista.
Em outro editorial, o mesmo The Economist elogia a "beleza" das reflexões do papa e do seu convite aos consumidores para mudarem de mentalidade. Depois, a revista se concentra no impacto da encíclica na América do Sul, onde, infelizmente, essa mudança de mentalidade pode se revelar difícil devido à "complexa realidade" dessa área do planeta. No Brasil, por exemplo, a Floresta Amazônica é vulnerável ao desmatamento ilegal por conta de contextos sociais que envolvem a sobrevivência diária de populações pobres: é mais difícil lutar simultaneamente contra o desmatamento e contra a pobreza, para não mencionar, além do mais, outros interesses econômicos problemáticos. O editorial também ressalta que os grupos protestantes da América do Sul oferecem visões mais atomistas sobre a vida, contrariando a mensagem comunitária do papa.
Foi duro, por outro lado, o ataque de Nick Butler, colunista do Financial Times, acusando "a mensagem do papa de errar o alvo": para ele, a crítica do Santo Padre à tecnologia não é o caminho certo para resolver problemas ecológicos. "O chocante da encíclica do papa é o seu ataque à ciência e à tecnologia, os únicos instrumentos de verdade que oferecem uma solução para as alterações climáticas". O jornalista critica, ainda, a ideia de abandonar o "paradigma técnico-econômico": tal abandono seria irresponsável porque “a pesquisa científica é o único modus operandi confiável para reduzir a poluição”. Butler acrescenta que as pessoas mais pobres podem se beneficiar de alternativas credíveis aos combustíveis fósseis se a tecnologia fornecer ferramentas concretas, tais como veículos elétricos, baterias avançadas e assim por diante.
Contra tais críticas, o secretário norte-americano de Energia, Ernest Moniz, recorda em comunicado de imprensa que o papa não é alheio aos debates científicos: "A dele não é apenas uma voz moral poderosa: ele também estudou engenharia química e compreende o consenso dos cientistas do clima sobre o quanto o acúmulo de poluição causada pelo homem põe em risco o nosso planeta".
Um artigo no Wall Street Journal (WSJ), aliás, afirma que "os cientistas apoiam o papa Francisco no tocante ao aquecimento global". Para o WSJ, a comunidade científica aprecia o valor moral e religioso que o papa acrescentou à discussão ecológica. Kerry Emanuel, professor de ciência atmosférica no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, comentou sobre a encíclica em uma entrevista ao WSJ: "O que me impressionou foi o fato de ligar a degradação ambiental ao declínio cultural, político e social. Esta é a parte mais importante, porque o documento diz que a mudança climática não é um problema isolado".
Já o The Guardian se concentra nas reações mais controversas. Jeb Bush, católico e candidato republicano à presidência norte-americana, afirmou que “não pretende deixar o papa ditar as estratégias econômicas” e que “a religião não deve se ocupar da esfera política”. Por outro lado, dom Joseph. E. Kurtz, arcebispo de Louisville, considera que os políticos devem acolher com mais cuidado a encíclica, dado que "a política e a economia têm um contexto moral. A política tem na sua base o bem comum". Para o arcebispo, esta reflexão é necessária se quisermos "ir além do interesse próprio".
Mais abertos à mensagem da encíclica se mostraram os democratas norte-americanos: na opinião do senador Brian Schatz, o papa demonstrou "liderança moral", necessária em todos os campos, não só no ambiental. O presidente Barack Obama também acolheu positivamente as palavras do papa Francisco e espera que "todos os líderes mundiais (…) reflitam sobre o chamado do papa Francisco à união de todos no cuidado da nossa casa comum".
Ainda de acordo com o Guardian, o lobby da indústria energética reagiu tempestivamente, enviando notas à mídia para defender a imagem dos seus clientes e criticar “o papa por não propor os combustíveis fósseis como solução para a pobreza”. O Instituto Heartland, centro conservador de estudos do clima, criticou o papa por ter imputado as mudanças climáticas ao homem. Para Stephanie Kirchgaessner, do Guardian, a encíclica pode ser interpretada como "o teste final de Francisco como um dos diplomatas mais influentes do mundo, depois de ajudar a moderar as relações entre os Estados Unidos e Cuba".
Tim Stanley, do Daily Telegraph, criticou os analistas mais cínicos: "O papa Francisco escreve algo de visionário sobre a fé e a mídia martela no 'comunismo'… A ‘Laudato Si’’ é um presente para a humanidade (…). Tanto a esquerda quanto a direita podem ser iluminadas". Para Stanley, numa época em que se fala perigosamente do transumanismo, a encíclica é um documento que exala um forte sentido "humanista", mas que, ao mesmo tempo, nos lembra que a Bíblia ensina a proteger o ambiente. "A encíclica é uma resposta espiritual para as nossas agonias materiais".
O Wall Street Journal também se concentra na "crítica veemente" ao capitalismo. O confronto ideológico entre o capitalismo americano e o ceticismo técnico-econômico do papa Francisco não é surpreendente: no campo acadêmico, existe um ramo da economia liberal, a economia ambiental, que diz que, quando o direito de propriedade e os incentivos são bem definidos, é melhor confiar a questão ecológica à "mão invisível" do mercado. Na encíclica, porém, o papa atacou este paradigma autorreferencial, que inclui o "mercado de carbono", por exemplo, chamando-o de "uma forma de especulação" e preferindo a ele as cooperativas locais autossuficientes. O WSJ aponta que, de acordo com alguns economistas, o papa foi muito precipitado ao considerar o capitalismo como parte do problema; outros acharam irrealista pensar em reduzir drasticamente os combustíveis fósseis.
Robert Sirico, do WSJ, descreve a encíclica como um exemplo de "teologia verde" e elogia o papa por ter fornecido uma "importante contribuição" sobre a questão ecológica e por ter alargado a fé no tocante ao meio ambiente. No entanto, ele julgou pouco imparcial o julgamento do papa contra os mercados, porque, em sua opinião, só o progresso econômico pode reduzir a pobreza.
Ross Douthat, do New York Times, comentou com entusiasmo o documento papal: "A admoestação do papa vai além da ecologia… é também uma meditação bíblica, uma crítica ao consumismo e uma reflexão sobre a mídia social". A grandeza da encíclica está no fato de criticar o "paradigma tecnológico" da nossa civilização. Para Douthat, o que torna a encíclica diferente das outras é a linguagem, que chega a ser forte e pungente.
Um artigo do Washington Post relata o que aconteceu durante a preparação da encíclica, dando particular atenção ao simpósio sobre o meio ambiente, em abril, no qual várias delegações tiveram a oportunidade de expressar as suas opiniões ecológicas diante do papa. Kert Davies, na entrevista, explica que os negacionistas da mudança climática não conseguiram influenciar a elaboração do documento final: "Este foi o seu Waterloo. Eles não queriam a encíclica, mas ela foi publicada".
O Washington Post elogiou também o estilo da encíclica: "É como um conúbio entre Santo Agostinho e um documento de uma academia nacional de ciências". Philip Bump, em um editorial, se concentra no acúmen do papa de encaixar-se no panorama norte-americano: "O papa fala não só para os Estados Unidos, é óbvio, mas também é claro que ele deliberadamente enviou uma mensagem aos políticos americanos". Para Bump, a mensagem do papa é um alerta àqueles que querem achar a solução para a ecologia no capitalismo. Visão diferente tem dom Donald Wuerl, arcebispo de Washington: para ele, o papa quis apenas oferecer a todos um "parâmetro moral" e não indicações políticas.
No New York Times, são recolhidas algumas reações acadêmicas: Vincent Miller, professor de teologia na Universidade de Dayton, aprecia na encíclica "a ideia básica de que, para amar a Deus, deve-se amar o próximo e o resto da criação". Christiana Z.Peppard, professora na Universidade Fordham, de Nova Iorque, acrescenta que "as pessoas perderam o senso de propósito da tecnologia e da economia (…) Estamos muito focados no curto prazo, nas tendências consumistas".
Também no New York Times, Coral Davenport escreve que o papa Francisco, ao defender o meio ambiente, tem como alvo o "capitalismo global". Davenport não considera infundadas as teorias sobre as alterações climáticas porque elas têm causado danos nas regiões mais pobres: “aumentou o nível do mar na costa do sudeste asiático; houve problemas nos cultivos da África”. Para Davenport, Francisco está tentando usar da sua autoridade moral para levar a mudanças até as políticas econômicas.
É encorajador notar que existe um consenso geral com o papa quanto à necessidade de "redefinir o progresso e mudar o modelo de desenvolvimento global". Mais difícil, porém, é encontrar consenso quanto ao paradigma para se remodelar o crescimento. Como diz Sirico no Wall Street Journal, a boa notícia é que, com a encíclica, abriu-se uma "discussão honesta": é a partir dela que poderemos, finalmente, começar a louvar juntos a “irmã e mãe terra”.