FRANCISCO ABRE A PORTA PARA OS QUE NÃO TÊM AS VESTES NUPCIAIS. MAS O QUE DIZ O PROPRIETÁRIO DA CASA?
(Por Sandro Magister) A autora da primeira carta é uma consagrada de clausura. O autor da segunda é um renomado advogado criminal no foro de Nápoles.
Tanto uma como outra intervêm na questão da comunhão para os divorciados novamente casados. A segunda, em particular, foi escrita após a leitura de “Amoris Laetitia” feita pelo Cardeal Vigário de Roma Agostino Vallini
Ambos estão entre aquelas “ovelhas fiéis”, mencionadas pelo cardeal Camillo Ruini na entrevista ao “Corriere della Sera”, em 22 de setembro, quando ele disse que reza ao Senhor “para que a busca indispensável pela ovelha perdida não coloqueem dificuldade a consciências das ovelhas fiéis”.
Com eles, a palavra:
Caro Magister,
Sou uma consagrada na vida de clausura e estou acompanhando muito atentamente e, na medida do humanamente possível, sem preconceitos, o debate sobre a comunhão para divorciados novamente casados, para tentar entender se qualquer decisão do Papa a este respeito realmente se insere dentro de suas prerrogativas – ou seja, o poder das chaves – ou se a intenção é fazer dessas chaves uma duplicata à revelia do Proprietário da casa, para introduzir, por engano, aqueles que não têm as vestes nupciais (Mt 22: 1-14) faltando assim com a confiança depositada.
Quero apresentar-lhe um argumento muito simples na forma, mas essencial no conteúdo, para tentar compreender o cerne do problema.
Se a Igreja dá a oportunidade de comungar àqueles que foram incapazes de percorrer o caminho da nulidade do casamento anterior, e optaram por se casar novamente no civil ou convivem com uma outra pessoa apesar de continuarem unidos sacramentalmente com o primeiro cônjuge (“uma só carne”, diz o Proprietário), então isso significa que a Igreja considera possível que se possa acolher o sacramento da santidade infinita de Deus, fazendo-O conviver tranquilamente na mesmíssima casa – corpo e alma do receptor – com o pecado, porque o adultério continuaria ainda sendo um pecado, a menos que se altere a doutrina.
Isso parece-lhe possível? Eu diria definitivamente não, se conhecemos ainda remotamente, o que é o pecado. E é o próprio Deus a nos recordá-lo com a Imaculada Conceição de Maria, que foi preservada do pecado justamente tendo em vista o fato de que receberia em seu corpo a hóstia sagrada, que é o verdadeiro Corpo e Sangue de Jesus.
Por quê? Porque é prerrogativa de Deus não coabitar com o pecado!
Eu penso que na fúria de tentar tergiversar sobre os aspectos jurídicos e emocionais, que são de cunho puramente humanos, se perde de vista a dimensão sobrenatural da nossa vida, a face do Deus eterno e santo e o misterioso poder de seu comando, isto é, de Sua vontade que não tem que ser necessariamente compreendida, mas tão somente acolhida e obedecida, porque vem Dele.
Receber a Eucaristia em um estado de pecado grave significa não só violar um mandamento, mas, também aqui está a impiedade: forçar o Senhor a conviver com o mal. Comete-se uma abominação, e para usar uma palavra que soa muito mal aos nossos ouvidos modernos, é este o elo que falta na interminável discussão sobre o assunto: a santidade de Deus.
Por que querem dar às pessoas que estão nesta situação a possibilidade de cair em um pecado tão terrível? A Igreja realmente quer sugerir a seus filhos que o Santo de Deus e o Divisor por excelência possam estar juntos?
Esse é o coração do problema: que o pecado seja removido porque não querem reconhecê-lo como tal, porque irrita e atua como um obstáculo aos nossos planos. Mas esta remoção, retirando-o do seu lugar de direito, no final só servirá apenas para colocá-lo, paradoxalmente, no mesmo “lugar” de Deus.
Estamos percebendo o que significa esta mudança?
“A tentativa terrivelmente insensata, e ainda assim excitante até as raízes, de destronar Deus, de rebaixá-Lo de grau, de destruir Deus … o homem tem que admitir a profundidade absoluta do pecado … ele deve depor o orgulho de seu destino, desfazer-se da teimosia de querer fazer o seu próprio negócio, de viver por conta própria, e aprender a humildade enquanto busca a graça “(Romano Guardini, “O Senhor “, p. 175).
Muitos vão objetar: mentalidade de Antigo Testamento, quando ainda não havia a misericórdia trazida por Jesus. Mas eles estão errados e muito.
O “foi dito” e “porém eu vos digo” de Jesus no Sermão da Montanha (Mt 5-7) – portanto, no cenário das bem-aventuranças – nos introduz na vida nova na qual a lei antiga e o moralismo cedem lugar à fé e à graça, mas pedem e exigem muito mais do que exigia a lei do Antigo Testamento, porque Jesus não está muito interessado em nos fazer sentir confortáveis na vida deste mundo, mas sim muito mais preocupado com a nossa salvação eterna.
A Redenção tem uma necessidade absoluta de fazer com que o pecado desapareça completamente e, portanto, não fazer jamais um pacto com ele. Com a “plenitude dos tempos” nos foi exigido o que não foi exigido ao homem do Antigo Testamento: a totalidade da obediência, porque agora, com a redenção, fomos capacitados a colocá-la em prática. Ao dizer “Ouvistes o que foi dito aos antigos: não cometerás adultério … Mas eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher com intenção impura, já adulterou”, Jesus diz que o significado do mandamento é mais profundo, vai até a intenção, porque é da intenção que nasce a ação (ainda citando Guardini, p. 116).
No longo discurso de Jesus não encontramos uma misericórdia barata, como a entendemos, mas uma concepção de pecado bem refinada, não grosseira, num crescendo de tom e de tensão, tanto que, no final, o evangelista deve tomar nota de que “a multidão ficou assustada com o seu ensinamento” (Mt 7, 28).
Para Jesus não interessa uma pura doutrina dos costumes morais, mas uma existência plena, totalmente redimida. Então procuremos entender que não se trata de conceder um direito a alguém (mentalidade legalista), mas de querer meter as mãos sobre a santidade de Deus. O que se está tentando fazer é tocar o intocável e “forçá-lo” a conviver com o senhor do Mal.
O não receber a Eucaristia, nos casos de que falamos, não prejudica a salvação eterna, não tira o hábito nupcial que foi mencionado no início, ao passo que recebê-la indignamente faz perder tudo (1 Cor 11). Não afundemos pois nossos irmãos em um estado infinitamente pior do que aquele em que eles já se encontram. Isso é fazer o jogo do Inimigo.
Se a Igreja quer conceder essa possibilidade, significa que já os julga como mortos e, portanto, tem a intenção de forçar Deus a adotar suas orientações e contramedidas.
Mas quem somos nós para julgar antecipadamente estes irmãos e ditar tempos e modos a Deus? Nossos caminhos não são os vossos caminhos (cf. Is 55, 8).
Cordiais saudações e agradecimentos por seu trabalho.
Giovanna Riccobaldi
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Caríssimo Magister,
A nota do cardeal Agostino Vallini sobre a “Amoris Laetitia” tem ares de uma escalada heróica sobre espelhos, uma torção em torno de um pau-de-sebo para tentar escalá-lo.
E todavia, o que falta, um pouco surpreendentemente, falta quase em todas as partes. Tanto na exortação como em muitos de seus comentários, favoráveis ou críticos que sejam.
Falta a graça. Aquela mesma graça que faz com que São Paulo diga – e é a palavra de Deus – “possum omnia in Eo qui me confortat” (Fl 4, 13). Aquela graça que nos impede de afirmar, enquanto Católicos, que é impossível praticar a continência. Difícil, extremamente difícil – por isso seria sábio e prudente evitar ocasiões próximas de pecado e separar as camas – mas jamais impossível.
De resto – no plano mesmo da lógica mais elementar – se Deus ordenasse o impossível, ao invés de um tirano, Ele seria um sádico. Enfim, é doutrina inalterável da Igreja, estabelecida e clarificada em Trento, que com a ajuda da graça de Deus todos podem praticar a virtude e a moralidade de acordo com seu estado de vida.
Parece-me que o verdadeiro nó da “Amoris Laetitia” seja esse: a visão horizontal que leva em conta apenas a natureza humana decaída e os hábitos contraídos por essa mesma natureza humana decaída, com a exclusão de todo o horizonte sobrenatural. Completamente! Psicologismos, sociologismos, filosofismos de conveniência: tem lugar para tudo quanto é bobagem menos um discurso sobre a graça. Que por si só consente – e se é possível, não é impossível; e se não é impossível, exige – de cada um de nós que se respeite o Decálogo e os deveres específicos do nosso estado. Incluindo, por exemplo a castidade sacerdotal, matrimonial e extramatrimonial .
E a propósito dessa última, como podemos colocá-la – também o Cardeal Vallini – com o fato de que, assumindo e jamais consentido que no foro interno se possa deliberar sobre a nulidade de um casamento anterior, sendo que os dois permaneceriam solteiros perante a Igreja e, portanto, não habilitados ao matrimônio legal?
Obrigado novamente por tudo que tens feito e cordiais saudações “em Jesu et Maria.”
Giovanni Formicola