O HOMEM QUE DEVERIA TER SIDO ELEITO PAPA – COMENTÁRIO DE SANDRO MAGISTER
A operação que produziu o fenômeno Francisco vem de longe, tão longe quanto 2002, quando a revista “L’Espresso” descobriu o favoritismo de Bergoglio.
Foi a primeira revista a descobrir e publicar que o então semi-desconhecido arcebispo de Buenos Aires estava entre os preferidos ao papado, dentre os verdadeiros, não os de fachada.
Examinou-se o terreno no conclave de 2005, quando todos os votos dos que não queriam Joseph Ratzinger como papa confluíram para Bergoglio.
A operação ocorreu no conclave de 2013, em grande parte porque muitos dos eleitores do cardeal argentino ainda não sabiam muito sobre ele e certamente também não sabiam que ele havia desferido um “golpe no estômago” da Igreja, comentado dias antes pelo seu adversário, derrotado na Capela Sistina, o Arcebispo de Milão Angelo Scola.
Entre Bergoglio e seus eleitores não havia – e ainda não há – total conformidade. É um Papa de anúncios mais do que de realizações, de alusões mais do que de definições.
Há, no entanto, um fator-chave que atende às expectativas de uma virada histórica da Igreja, capaz de abranger seu atraso emblemático de “duzentos anos” a respeito do mundo moderno denunciado por Carlo Maria Martini, o cardeal que gostava de ser chamado de “antipapa”, ou seja, o antecipador daquele que teria de vir. E é o fator “tempo”, que para Bergoglio é sinônimo de “iniciar processos”. Ele pouco se importa com o objetivo, porque o que conta é o caminho.
E, efetivamente, assim é. Com Francisco a Igreja tornou-se uma obra em andamento. Tudo é movimento. Tudo é fluido. Não há dogma que resista. Tudo é discutível e age-se de acordo com isso.
Martini era o cabeça do clube de Sankt Gallen, Suíça que planejou a ascensão de Bergoglio ao papado. O clube adotou o nome da cidade suíça onde se reuniam, contando com os cardeais Walter Kasper, Karl Lehmann, Achille Silvestrini, Basil Hume, Cormac Murphy-O’Connor e Godfried Danneels. Destes, apenas dois, Kasper e Danneels, continuam comprometidos, recompensados e tratados com a máxima consideração pelo Papa Francisco, apesar de representarem duas Igrejas nacionais em ruínas – a alemã e a belga – e apesar de que Daneels tenha caído em desgraça por tentar encobrir, em 2010, os abusos sexuais de um bispo que era seu pupilo e do qual a vítima era seu jovem sobrinho.
Bergoglio nunca pôs os pés em Sankt Gallen. Mas os candidatos do clube o adotaram como seu candidato ideal e ele adaptou-se perfeitamente ao plano.
Na Argentina, todos lembram muito bem de como ele revelou-se depois, como papa. Taciturno, distante, sério, reservado também com as massas. Nunca se ouviu uma palavra ou um gesto de desacordo com os pontífices reinantes, João Paulo II ou Bento XVI.
Muito pelo contrário, ele elogiou por escrito a encíclica “Veritatis splendor”, bastante severa contra a frouxidão moral “da situação” historicamente atribuída aos jesuítas. Ele não escondeu a sua convicção de que Lutero e Calvino tenham sido os piores inimigos da Igreja e do homem. E atribuiu ao diabo o engano da lei a favor de casamentos homossexuais.
Mas depois fez com que os católicos, que estavam reunidos em frente ao Parlamento para uma vigília de oração contra a iminente aprovação da lei, voltassem para suas casas “para evitar polêmicas”. Ajoelhou-se e pediu para um pastor protestante abençoá-lo em público. Ele estreitou laços de amizade com alguns deles e também com um rabino judeu.
E, acima de tudo, encorajou seus sacerdotes a não negar a comunhão a ninguém, sejam casados, pessoas que moram juntas ou divorciados que voltaram a se casar. Silencioso e sem tornar pública sua decisão, o arcebispo de Buenos Aires já fazia o que os papas da época proibiam e que ele logo, como Papa, permitiria.
Em Sankt Gallen as pessoas sabiam e tomavam nota. E quando Bergoglio foi eleito, o mundo conheceu-o desde o início pelo que ele era de verdade. Sem véus.
(O comentário é de Sandro Magister, jornalista, publicado por Settimo Cielo. A tradução é de Henrique Denis Lucas).