Papa Francisco reduz poder da Opus Dei no Vaticano
Palavras são palavras, e não é diferente com o documento elaborado pelo papa Francisco, intitulado Ad carisma tuendum (Para tutelar o carisma). A quem o lê fica a impressão de que o pontífice alterou apenas em detalhes exteriores e símbolos meramente formais a imagem da católica e ultraconservadora congregação Opus Dei (Obra de Deus), uma das mais ricas, fortes, fechadas, estruturadas e influentes organizações religiosas composta principalmente por mulheres e homens laicos – existe em pelo menos sessenta países, inclusive no Brasil, reunindo cerca de noventa mil membros leigos e dois mil sacerdotes. O texto papal, no entanto, que parece operar na superfície, na verdade abala toda a estrutura da Opus Dei, retira-lhe a autonomia e a independência e a submete às ordens do Vaticano. Por exemplo: onde está escrito que o prelado (dirigente) não será mais distinguido com o título de bispo e que agora lhe é vedado usar anel e vestes episcopais têm-se a impressão de simples formalidade. Não é. Por meio de tais determinações, a Opus Dei acaba de perder o status de prelazia que lhe foi concedido, em 1982, pelo papa João Paulo II.
A congregação, que possuía sua própria diocese, daqui para frente terá de se integrar com os bispos diocesanos, ou seja, os bispos da estrutura da Igreja Católica. Ao promover tal integração, Francisco dilui um pólo de poder extremamente conservador, fundado em 1928, em Madri, pelo religioso e hoje santo Josemaría Escrivá de Balaguer. Além disso, a Opus Dei, que reúne pessoas que valorizam a fé cristã e, sobretudo, o ato de trabalhar obsessivamente, terá de se remeter não mais diretamente ao papa, mas ao departamento administrativo da Cúria Romana, que supervisiona a educação religiosa. Mais: precisará apresentar todos os anos um relatório sobre o seu trabalho apostólico. A perda de prestígio junto à hierarquia do Vaticano ficou patente. E é fato consumado. “Ao não mais possuir as divisões territoriais e administrativas, a Opus Dei terá de se alterar estruturalmente”, diz o historiador e teólogo Gerson Leite de Morais.
“É necessária uma forma de governo baseada mais no carisma que na autoridade hierárquica”, escreveu Francisco em seu decreto. Em nome da Opus Dei, o monsenhor e teólogo espanhol Fernando Ocáriz Braña respondeu que “a congregação aceita as mudanças e exorta os seus membros a seguirem o apelo do papa com a finalidade de difundir pelo mundo o chamado à santidade”. Frisou, ainda, que as alterações nada têm a ver com denúncias que quarenta e três mulheres trabalharam para a Opus Dei como escravas nas chamadas “escolas de empregadas”. Sobre isso, até a quinta-feira 11 o Vaticano silenciou.
O papa Francisco vem falando na possibilidade de renúncia devido a sua dificuldade de locomoção, mas já deixou claro que tal afastamento “somente acontecerá depois de tomadas importantes decisões”. Ele parece estar seguindo nessa direção, e faz-se compreensível que tenha deixado para o final do pontificado o difícil movimento no melindroso tabuleiro político de Roma, onde está estabelecida a principal sede da Opus Dei. “Francisco tem uma visão progressista, ao contrário da Opus Dei que mantém um pé fincado no passado”, diz Morais.
Ao enfraquecer esse lado da Igreja, Francisco repristinou a Santa Sé como única autoridade, colocou sob controle os passos de uma das mais conservadoras alas do catolicismo e tenta retirá-la do foco das críticas que a ligam à extrema-direita. A ideologização remete-se à Espanha e ao ditador Francisco Franco. Nos anos 1940, as camadas extremistas do franquismo combatiam a Opus Dei devido às posições de Escrivá de Balaguer francamente favoráveis à liberdade de expressão. Uma década depois, a coisa virou: diversos membros da Opus Dei participaram de cargos de confiança do governo ditatorial do ultradireitista Franco. Tal aproximação ideológica deixou como herança um telhado de vidro através do qual as correntes progressistas olham o Vaticano na tentativa de descobrir na claridade aquilo que ele manteria na escuridão.