Papa recebe prêmio e questiona “o que está acontecendo com a Europa”
Ao receber o prêmio Carlos Magno da União Europeia, pela defesa dos direitos europeus, nesta sexta-feira (06), o papa Francisco questionou o que aconteceu com o continente que é reconhecido pela defesa dos direitos e da liberdade na atual crise imigratória.
"O que aconteceu com você Europa humana, paladina dos direitos humanos, da democracia e da liberdade? O que aconteceu com a Europa terra dos poetas, filósofos, artistas, musicistas, literatos? O que aconteceu com a Europa mãe dos povos e das nações, mãe de grandes homens e mulheres que souberam defender e dar a vida pela dignidade dos seus irmãos", questionou o Pontífice em seu discurso.
Conhecido por não aceitar premiações individuais, o líder católico pediu que a cerimônia de hoje não seja uma celebração, mas que "acolhamos essa situação para desejar um novo lançamento corajoso para este amado continente". "A criatividade, a engenhosidade, a capacidade de se levantar novamente e de ultrapassar os próprios limites pertencem à alma da Europa", ressaltou.
O Pontífice pediu que os líderes dos governos europeus busquem em sua história as motivações para enfrentar o desafio dos refugiados da melhor maneira possível e que se unam frente à questão. "No século passado, ela [Europa] testemunhou que um novo início era possível. Após anos de confrontos trágicos, que culminaram na guerra mais terrível que se tem registro, ela saiu, com a graça de Deus, com uma novidade sem precedentes na história. O cenário de destruição não pode extinguir a esperança e a busca pelo outro, que estava no coração dos Pais fundadores do projeto europeu. Eles colocaram as bases em um baluarte de paz, em um edifício construído por Estados que não se uniram por imposição, mas pela liberdade que há no bem comum, renunciando para sempre impor fronteiras", disse o Pontífice.
No entanto, segundo o líder católico, "aquela atmosfera de novidade, aquele ardor de construir a unidade aparentam estar cada vez mais gastos porque nós, os filhos daquele sonho, estamos tentados a ceder aos nossos egoísmos, olhando para lucros e pensando em construir espaços particulares".
A fala do Papa foi uma clara referência aos países-membros da União Europeia que estão propondo, há cerca de dois anos, a volta das barreiras físicas nas fronteiras entre as nações e a imposição de controles fronteiriços que foram banidos desde a assinatura do tratado de livre circulação de pessoas, o famoso Tratado de Schengen. "Os projetos dos Pais fundadores, arautos da paz e profetas do amanhã, não foram superados. Inspiram, hoje mais do que nunca, a construir pontes e destruir os muros.
Parecem expressar um convite sincero de não se contentar com mudanças cosméticas ou com compromissos tortuosos para corrigir algum acordo, mas para estabelecer corajosamente uma nova base fortemente enraizada", disse Jorge Mario Bergoglio.
Para o argentino, é preciso "atualizar" a ideia do que é a Europa para enfrentar "com coragem" a situação que apresenta múltiplas possibilidades nos dias atuais. Segundo o Pontífice, para isso, é preciso um novo "humanismo" baseado em três capacidades: "a capacidade de integrar, a capacidade de dialogar e a capacidade de gerar".
A comunidade de povos europeus deve "vencer as tentações de prender-se a paradigmas unilaterais e de aventurar-se em 'colonizações ideológicas'" e precisa redescobrir "a amplitude da alma europeia, nascida do encontro da civilização e dos povos, mais vasta do que as atuais fronteiras da União Europeia, e chamada a virar um novo modelo de diálogo". "A face da Europa não se distingue por se opor aos outros, mas em trazer impressas as características de várias culturas e a beleza de vencer o que está fechado. Se há uma palavra que precisamos repetir até cansar é esta: diálogo. A cultura do diálogo implica em um autêntico aprendizado, uma opção que nos ajuda a reconhecer que o outro é um interlocutor válido, que nos permite proteger o estranho, o imigrante, aquele que pertence a outra cultura como um sujeito a ser escutado, considerado e admirado", destacou.
Pedindo a "reconstrução" da sociedade como um todo, Bergoglio afirmou que a paz só será duradoura na medida em que "armemos nossos filhos com as armas do diálogo e ensinemos a eles que a boa batalha do encontro e da negociação" sejam instrumentos "não para estratégias de morte, mas sim de vida". "Hoje, é urgente a construção de coalizões não apenas militares ou econômicas, mas culturais, educacionais, filosóficas e religiosas. Coalizões que coloquem em evidência que, mesmo com muitos conflitos, é duro o jogo de poder dos grupos econômicos. Coalizões capazes de defender o povo de ser utilizado para fins impróprios. Armemos nossa gente com a cultura do diálogo e do encontro", ressaltou o sucessor de Bento XVI. O Santo Padre ainda pediu que os governos europeus busquem novos modelos econômicos "mais inclusivos e justos", que beneficiem toda a sociedade, e que passem da "economia líquida para uma economia social".
Para ele, a liquidez atual favorece "a poucos" e à "corrupção" e impede que os jovens construam seu futuro porque as oportunidades de verdadeiro crescimento "são para poucos".
"Com a mente e com o coração, como um filho que encontra na mãe Europa as suas raízes de vida e de fé, sonho com um novo humanismo europeu. Sonho com uma Europa jovem, capaz ainda de ser mãe. Sonho com uma Europa que se preocupa com a cura de uma criança, que socorre como um irmão o pobre que busca o acolhimento porque não tem mais nada. Sonho com uma Europa em que ser um imigrante não é um crime, mas sim um convite pelo maior empenho com a dignidade de todo ser humano. Sonho com uma Europa que escuta e valoriza as pessoas doentes e mais velhas porque elas não são descartáveis. Sonho com uma Europa da qual não se possa nunca dizer que seu empenho pelos direitos humanos foi sua última utopia", finalizou.
O discurso e Francisco terminou sob um longo aplauso e um clima de comoção na Sala Regia, onde foi realizada a premiação.