Qualquer pedaço de pau serve para bater na Igreja Católica, inclusive acusá-la de ter mandado exterminar gatos
Não é de hoje essa bobagem de que “a Igreja mandou exterminar gatos na Idade Média”. Mas um ator da Rede Globo resolveu repetir a mesma conversa, a fim de entreter o povo em casa. O resultado não poderia ter sido pior.
Qualquer pedaço de pau serve para bater na Igreja, como dizia Chesterton, inclusive acusá-la de ter mandado exterminar gatos.
O pecado original não perturbou apenas a relação entre o homem e a mulher. Pensando bem, os gatos também saíram perdendo nessa história. Quem aqui nunca testemunhou o prazer psicótico com que um menininho esfola o bichano da irmã mais velha? Há bem pouco tempo, aliás, a molecada se divertia, aqui e acolá, cantarolando sobre o berro do gato que sobreviveu a uma paulada na moleira. Felizmente, algum pedagogo de bom senso fez o serviço de educar esses meninos, salvando muitos felinos de estalos na cauda ou de irem parar no microondas.
Mas pau que não bate em Chico, serve para bater em Francisco. Na verdade, em Gregório IX. De fato, mais comum do que moleques endiabrados maltratando gatos é artista falando bobagens a respeito da Igreja. E, nesse caso em particular, há, infelizmente, bem poucos pedagogos interessados na solução do problema. Com toda franqueza, é bem provável que eles sejam a causa da querela, dadas as aulas absurdas sobre o quão terrível e obscura teria sido a tal da “Idade das Trevas”. Por isso, qualquer pedaço de pau serve para bater na Igreja, como dizia Chesterton, inclusive acusá-la de ter mandado exterminar gatos.
Quem embarcou nessa canoa furada ultimamente foi o ator global Miguel Falabella. Conhecido por seus programas humorísticos, o artista resolveu falar “sério” nos últimos dias, com o nobilíssimo objetivo de “informar” os pobres brasileiros, presos em casa por conta do coronavírus. O resultado, no entanto, foi uma tragédia grega. Segundo Falabella, a culpada pelo surto de Peste Negra na Europa, durante o século XIV, teria sido a Igreja Católica, porque, em 1232, o Papa Gregório IX teria ordenado a matança de todos os gatos, por considerá-los — atenção! — “animais demoníacos”. E sem um predador natural, concluiu Falabella, os ratos tomaram conta da Europa, espalhando a bactéria da peste bubônica por toda parte.
Antes de tudo, já é uma grande piada achar que os gatos, por si só, impediriam o surto de Peste Negra. Primeiro, porque eles também poderiam ser infectados pela doença e transmiti-la aos demais. Além disso, gatos não são os únicos predadores naturais de roedores; nessa lista também se incluem os cachorros, as doninhas, as cobras e certos pássaros. Portanto, as causas da epidemia foram muito mais profundas do que uma suposta “carência criminosa” de felinos caçadores. Na verdade, estudos mais recentes indicam que foram os piolhos dos humanos, e não as pulgas dos roedores, os responsáveis pela transmissão da doença. Mas onde há uma vergonha, há sempre um desavisado querendo passá-la.
Não é de hoje que essa história divulgada por Falabella circula por aí, embora não passe de puro delírio. O decreto de Gregório IX a que costumam aludir para acusar a Igreja é o Vox in Rama, endereçado primeiramente ao rei Henrique VII da Germânia e ao arcebispo de Mainz, Siegfried III. Acontece que nesse documento o Papa não fala absolutamente nada (nem uma vírgula) sobre matar gatos ou quaisquer outros animais. A única menção ao bicho está na descrição de um ritual herético em que havia uma estátua de gato preto, cujas nádegas deviam oscular os participantes de tão macabra liturgia.
Obviamente, o Santo Padre estava preocupado com o crescimento dessa seita satânica e, em razão disso, pediu às autoridades uma posição firme
Mas não os mandou dizimar gatos. Também não há registro algum de que alguém, em toda a Europa, tenha interpretado essa carta papal, especificamente, como uma ordem de extermínio. Até porque aquele era o tempo medieval, não é mesmo?, e, por isso, não havia comunicação em massa como nos dias de hoje. Portanto, a carta do Papa não corria o risco de cair num Vatileaks. Ela era reservada a um círculo bem pequeno de pessoas, porque a preocupação do Santo Padre dizia respeito a uma região particular da Germânia. Tudo indica que ninguém fora dali soube do assunto.
Mais ainda, é preciso ressaltar que o documento também cita a presença de outros animais em rituais macabros, como sapos, por exemplo. Se a simples menção aos gatos pudesse ser interpretada como ordem para matá-los, o mesmo teria de valer para os demais, por pura lógica. Mas nenhum arquivo registra, em toda a história da Europa, um genocídio batráquico incentivado pela Igreja.
O que se sabe, de fato, é que em certas regiões da Europa havia, sim, um festival bastante estranho, em que as pessoas jogavam gatos na fogueira.
Daí podem ter vindo as pinturas do assassinato deles. É precisamente nessa festividade, aliás, que a cidade de Ypres, na Bélgica, se inspira para realizar o Kattenstoet, que significa “Festival do Gato”, uma espécie de reparação ao que acontecia antigamente. Também em 1730 (depois da Idade Média, portanto) houve um incidente na França, envolvendo tipógrafos aprendizes que, por vingança, recolheram os gatos de seus mestres e os mataram, sob o pretexto de que eram utilizados para bruxaria. Esse crime foi narrado pelo escritor Robert Darnton, no livro The Great Cat Massacre and Other Episodes, que se tornou muito popular em 1984.
Outra fonte muito citada pelos detratores da Igreja é o Classical Cats: The Rise and Fall of Sacred Cat, escrito pelo historiador americano Donald Engels. No epílogo do livro, Engels afirma que os cristãos odiavam gatos e os relacionavam a criaturas do demônio. O problema é que o autor, como de praxe, não apresenta qualquer evidência concreta e incontrastável para tamanha afirmação, mas apenas a sua interpretação pessoal de casos particulares e documentos pontifícios, como o Vox in Rama. O historiador Spencer Alexander McDaniel, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, dá mais detalhes sobre o embuste num artigo de seu site, de onde tiramos boa parte das informações para este texto. Vale a pena conferir.
Houve, sim, matança de gatos aqui e ali na Idade Média como também em outras épocas. Mas nada disso jamais aconteceu por ordens de um Papa.
Tratou-se apenas de episódios, entre tantos outros, da brutalidade humana, como sói acontecer em toda a história. Até hoje há quem queira atirar o pau no gato só para vê-lo berrar. Mas há também quem queira atirar o pau no Papa, só para culpá-lo do berro do gato…