Ratzinger e Bergoglio, a coabitação de dois Papas no Vaticano
A histórica renúncia de Bento XVI, o primeiro papa a se demitir em seis séculos, e a sua decisão de continuar a viver no Vaticano, mas no Mosteiro Mater Ecclesiae, determinaram uma situação sem precedentes: pela primeira vez em dois mil anos de história da Igreja Católica, dois Papas coabitaram no cidade-Estado.
Joseph Ratzinger, além disso, mesmo tendo abandonado o Pontificado, não queria ser chamado de “bispo emérito de Roma”, como foi o conselho de alguns religiosos e escolheu por si mesmo a denominação de “papa emérito” ou “pontífice romano emérito”.
Manteve as vestes brancas, embora sem a capa característica, e o título de “Sua Santidade”. Já a coabitação com o sucessor, papa Francisco, ao qual prometeu “obediência”, foi por muitos anos tranquila, sem solavancos, com uma harmonia publicamente perfeita, sem nenhuma ingerência no governo da Igreja com atos ou declarações que poderiam, em alguma escala, colocar em dúvidas a autoridade ou a decisão do Pontífice no cargo.
Viver “escondido do mundo”, dedicado aos estudos, à meditação e à oração foi a intenção anunciada pelo Papa demissionário: uma linha que sempre manteve, com uma “discrição bávara”, interrompida apenas por pouquíssimas saídas públicas e, em 2016, por um punhado e entrevistas – sobretudo com o lançamento de um livro-testamento, o “Últimas Conversas”.
A obra tinha uma série de perguntas e respostas com o jornalista alemão Peter Seewald, que já tinha publicado outro livro com Ratzinger, o “Luz do Mundo”.
Mas, o maior “caso”, com o papa emérito já com quase 93 anos, foi a publicação em janeiro de 2020 do livro com o cardeal prefeito para o Clero, Robert Sarah, “Do Profundo de Nosso Coração”. Nos textos, os dois autores divulgavam suas teses radicalmente contrárias a qualquer inovação sobre o celibato sacerdotal.
O livro saiu logo após o Sínodo da Amazônia, onde os bispos votaram por maioria sobre a possibilidade de sacerdócio “casado”, ou seja, a concessão do presbitério para pessoas casadas, também para enfrentar as exigências pastorais nas longínquas áreas amazônicas.
O papa Francisco estava então redigindo a exortação pós-sinodal e estava-se esperando suas decisões sobre o tema. A saída do livro a quatro mãos, que depois Ratzinger pediu para retirar seu nome como co-autor, pareceu uma tentativa de condicionar-se às decisões do atual líder da Igreja Católica.
Tentativa que, mesmo sem a prova dos fatos, ocorreu no momento em que Jorge Mario Bergoglio publicou o “Querida Amazônia”, onde escolheu não abrir a nenhuma inovação sobre o celibato, postergando as decisões para novos estudos e reflexões.
Do seu lado, o papa Francisco manifestou em todas as ocasiões um respeito filial ao seu antecessor, manifestando-lhe também proximidade com frequentes telefonemas ou visitas.
“É como ter um avô sábio em casa”, disse mais de uma vez para reforçar a coragem e o apoio que lhe dava poder para estar próximo da “sabedoria” e da “experiência”, além de se beneficiar da gigantesca cultura teológica do papa emérito.
Bergoglio também sempre reconheceu o caminho que ele abriu com sua corajosa renúncia, um “ato do governo da Igreja”, uma estrada nova: aquela dos papas eméritos, que não existiam antes, e que agora, pode ser prorrogada com eventuais decisões análogas a de Ratzinger no momento em que a idade avançada e a falta de forças poderão forçar os futuros pontífices também à renúncia.
Ao papa emérito Bento XVI, Francisco também reconhecia o fato de ter sido aquele que abriu a luta sem fronteiras contra a pedofilia, já levando adiante o “caso Maciel” (fundador da ordem dos Legionários de Cristo) desde quando era cardeal, contra tudo e contra todos, quando “não tinha forças para se impor”.
Essa convivência se manifestou em sintonia também nos diversos e repetidos encontros: duas imagens, em especial, a de 23 de março de 2013, quando o recém-eleito foi a Castel Gandolfo para visitar o então novo papa emérito. Ali, lhe foi confiada a entrega dos dados da investigação “Vatileaks” feitas por seus três cardeais investigadores; Já no dia 8 de dezembro de 2015, na abertura do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, quando Francisco e Bento XVI andaram juntos, um depois do outro, pela Porta Santa de São Pedro.
Essa boa relação dos dois Papas não impediu, porém, as nostalgias dos “ratzingerianos” contrários às inovações e às reformas do sucessor, e dos vários religiosos que consideram que a renúncia de Bento XVI não foi válida porque “não teria ocorrido livremente” – o que não permitiria a escolha por Francisco.
Também provocou discussões, em maio de 2016, a declaração do secretário de Ratzinger e prefeito da Casa Pontifícia, monsenhor Georg Gaenswein, sobre um “ministério alargado com um membro ativo e um contemplativo”, que veria Bento XVI como “se tivesse dado um passo para o lado para abrir espaço ao seu sucessor e a uma nova etapa na história do Papado”.
Declarações consideradas de alguma maneira explosivas, que ajudaram, mesmo que rapidamente, os detratores de Bergoglio. Mas, o próprio Francisco acabou colocando fim às discussões em uma entrevista para jornalistas meses depois.
“Ouvi que alguns foram lá [se encontrar com Bento XVI] se lamentar porque ‘esse novo Papa’…, e ele os mandou embora! Com o melhor estilo bávaro: educado, mas os mandou embora. E há só um Papa”, afirmou dizendo que o antecessor “era um grande homem de oração, de coragem”.
“O papa emérito – não o segundo Papa – é fiel a sua palavra e que é um homem de Deus. Ele é muito inteligente e, para mim, é como ter um avô sábio dentro de casa”, concluiu.